Contato

Nas últimas semanas usei um tempo para revisar os contato que tenho salvo no meu telefone. Sim, uma atividade relativamente desnecessária, exceto se você tiver passado pela situação de copiarem sua foto de perfil no WhatsApp e tentarem se passar por você. A foto de perfil está disponível somente para quem está salvo nos meus contatos, o que significa que algum número salvo nos meus contatos não deveria estar lá. Assim sendo, a motivação da atividade foi uma questão de segurança, tanto minha quanto de familiares e conhecidos. Não sei exatamente como fazem isso, mas sei que não foi bacana. Minha mãe uma vez caiu em um golpe assim e passou um dinheiro para mim, mas não era para mim.

Voltando, revisei meus contatos salvos. Eliminei muitos, muitos mesmo. Prestadores de serviço de cidades que não moro mais, pessoas relacionadas à antigos empregos e que só precisava quando estava no emprego, pessoas que eu não sei quem eram e não sei qual fora a origem do contato. Alguns desses últimos usei o dito aplicativo de mensagens supracitado para verificar a foto e tentar descobrir quem eram, e aconteceram casos em que Anas tinham barba e Jorges tinham longas madeixas. Ou seja, contatos que já não eram mais das pessoas à quem pertenceram originalmente e eu fiquei sem saber quem era quem. Mas não perdi tempo na decisão de excluir estes e segui adiante.

Isso já aconteceu algumas semanas atrás e não estou mais me preocupando com essa atividade. Mas ontem escutei em um podcast falarem sobre a pergunta de uma pessoa que tem mais de mil contatos e que estava incomodada com isso e queria saber se apagar contatos de pessoas com quem ela não se relaciona mais seria algo ruim, como apagar o passado. Pensei comigo que era uma pergunta relativamente tola, pois não tem como apagar o passado com a atitude de apagar um contato no telefone, tudo o que se viveu com a tal pessoa fica na memória e não no contato no telefone. Então o apresentador do podcast fez algo que me deixou surpreso. Ele apagou o contato de um grande amigo que já havia falecido a mais de uma década mas que ainda estava salvo no celular dele. Fez isso enquanto gravava o podcast. Não achei tolo o que ele fez, mas intencional. E o próximo parágrafo vai explicar o motivo.

Quando ouvi o que ele ia fazer me lembrei de um contato específico, salvo no meu telefone e que deliberadamente não apaguei na limpeza que fiz semanas atrás. O contato do meu pai.

Meu pai morreu a cinco anos. No ano passado troquei de telefone e acabei perdendo todas as conversas que eu tinha salvo com o contato dele. Apesar de na minha agenda ainda haver a foto dele, o número não está mais registrado no aplicado de mensagens, o que significa que está disponível para ser redirecionado para outra pessoa. E eu ainda tinha o contato dele salvo na minha agenda e não o apaguei. Na hora em que estava revisando os contatos não pensei nisso, foi uma decisão sem crítica alguma, simplesmente pulei o contato dele e segui adiante, mas ao ouvir o podcast me questionei: se não tenho mais as conversas e mesmo se eu ligar ele não vai atender, por que motivo tenho o contato dele salvo ainda? Tomei a decisão, mas não a ação.

Mais de hora depois cheguei em casa com isso na cabeça. Sim, é só um contato de telefone, mas seria como apagar o passado com meu pai? A pergunta não durou muito tempo, pois me lembrei da pergunta no podcast e dei risada. Na hora achei a pergunta tola e pouco tempo depois eu estava me fazendo a mesma pergunta. Peguei o telefone, acessei a agenda de contatos e busquei o nome do meu pai. Apaguei o contato.

Sabe o quanto da minha memória com ele se esvaiu quando apaguei o contato? Nada, absolutamente nenhuma memória foi esquecida.

Ouvi dizer que em algumas culturas as pessoas evitam dizer o nome dos falecidos, para que eles possam seguir seu caminho sem ficarem sendo constantemente chamados de volta. Acho que não preciso chegar a tanto, mas é simbólico deixar que a pessoa falecida siga seu caminho e nós, vivos, sigamos o nosso. O legado é importante, mas ele é o que sustenta o futuro, não o passado. Lembrar é bom, viver de lembrança é deixar o legado degradar-se. Tenho certeza que não é o que meu pai e nenhum outro pai gostaria que os filhos fizessem. Meu pai, especificamente, falava abertamente para mim que o que passou não muda, olhe para frente e pense em como vai fazer o que ainda está por fazer. Não se arrependa do que fez, mas do que não fez. E lembre-se disso, para que não tenha nada do que se arrepender.

Hiato

Sobre como ter hiatos, mesmo quando não são desejados.

Obviamente, passo por um hiato de publicações. Obviamente. Não tão óbvio assim é o motivo pelo qual isso acontece. Você não faz idéia. O pior de tudo é que nem eu faço idéia. Só sei que acontece e acredito que é por ter que acontecer. Não questiono o fato acontecer, e aprendi a não questionar o motivo de acontecer. Um hiato é um hiato. Se ele não existisse pode ser que faltasse ar para chegar até o final do dia, da semana, do mês, do ano, do próximo minuto. O hiato é necessário, e não aceitar a necessidade da sua existência leva à fila de espera dos terapeutas, holísticos e tradicionais. Aceito o hiato.

Mas, se o hiato é necessário nas publicações, por outro lado nunca escrevi tanto. Não tenho nada para publicar, mas tenho calos nos dedos onde o lápis se apóia e a pele da mão, onde ela corre sobre o papel enquanto escrevo, está diferente, pois não chega a ser calosa, mas não está igual a da outra mão, definitivamente. E isso porque escrevi. Não digitei, escrevi. Lápis e papel. Lápis mesmo, não lapiseira, nem caneta. Escrevi sobre como adoro lápis e papel, mas não acho que é uma paixão que já virou um texto publicado. É só uma paixão, guardada para mim mesmo. Tenho meus cadernos e meus lápis, e eles foram usados em quantidade significativa durante esse hiato. Nada publicável. Mas todo exercício conta, ouvi dizer.

Ainda não tenho plena certeza de que o hiato acabou. Se publicar esse texto, significa que ele acabou? Ou seria só um ato de misericórdia frente à minha própria frustração de não publicar?

Não, escrevi ali atrás que aceitei o hiato, então não existe frustração.

Cale-se! Há frustração, é inegável! Não minta!

Minto!

Não!

Chega.

Existe frustração. E existe hiato. E os dois são necessários. Fico frustrado e vivo o hiato. E escrevo, mesmo sem publicar. E continuo frustrado e sem sair do hiato, mesmo escrevendo. Ou saí do hiato, mesmo frustrado. Mesmo escrevendo.

Pedras nos bolsos

Quando eu era pequeno, na minha primeira e segunda infância, até a adolescência, onde eu já não era mais tão pequeno assim mas somente jovem, eu era muito magro. Não magro doente, só magro demais. Comia bem, não faltava comida em casa. E chegava a comer cinco cheeseburguers de redes de fast food um seguido do outro. Mas fazia isso depois de ter pedalado, corrido ou andado muito, e depois tornava a pedalar, correr ou andar. Algumas vezes também nadava. Naturalmente mais tarde comecei a praticar triathlon, mas eu odiava correr, então só o fazia quando o treinador estava olhando, caso contrário eu caminhava, e ele não entendia como eu conseguia fazer tempos tão bons na natação e na bicicleta e depois perder toda a vantagem na corrida. Mal sabia ele que a minha corrida quase não chegava a uma marcha atlética! Mas isso tudo fazia com que eu fosse magro, muito magro.

Ainda muito novo, uma criança com seus cinco anos, tenho a memória de que conseguia colocar o dedo dentro do buraco da tomada. Com o meu conhecimento de adulto de que os padrões de buracos de tomada não mudaram muito de então para cá, sei que não seria possível fazer isso, mas uma vez afirmei para alguns amigos em um bar que conseguia fazer isso e não era por lorota, mas por que era e continua sendo a memória que tenho. Talvez seja pela advertência que recebi alguma vez que mexi em tomada, o clássico “não enfia o dedo aí dentro moleque”, e na minha cabeça eu conseguia enfiar o dedo dentro da tomada. Mantenho-me no meu argumento, de que na minha memória eu conseguia enfiar o dedo no buraco da tomada. É impossível, eu sei, mas é o que a minha memória me conta.

Então pela época da minha pré adolescência, quando eu estava começando a passar mais tempo na rua do que em casa, um dia um tio meu me disse: não esquece de levar umas pedras no bolso, para o vento não te levar. Não me lembro o que eu estava indo fazer, mas lembro que adorei a expressão. Já sabia que o vento não iria me levar, já tinha tentando pular a favor de um vendaval para tentar voar um pouco e não tinha funcionado, mas gostei demais da expressão. Igualmente gostei quando me chamaram de capa de grilo e de chassis de codorna. Eu não gostava de ser magrelo demais, mas não tinha o que fizesse que me levasse a ganhar peso. A cerveja resolveu depois, mas bem depois.

Guardei as expressões com carinho na minha memória. Hoje não sou mais nem capa de grilo nem chassis de codorna, e com certeza não corro mais o risco de o vento me levar se eu não estiver com algumas pedras no bolso, mas mesmo assim guardei para eventual necessidade. E ela apareceu! Alguns anos atrás meu filho pegou uma virose daquelas boas, que sai por cima e por baixo, nada para no estômago. Ele perdeu quase dez por cento do peso corporal em dez dias, pois não estava comendo nada e ainda passando mal. Ficou magro como uma.. capa de grilo! Obviamente que não usei isso com ele, ainda era muito novo e iria soar como bullying, mas um dia não resisti e soltei para que ele colocasse algumas pedras no bolso. Como estava demorando para ganhar peso de novo ele passou a ser o magrelo da casa, e onde moramos agora venta muito mais do que onde eu morava quando criança. Assim que, um dia ele foi sair com a avó para ir a praia e eu lhe disse “colocou umas pedras no bolso?”. Ele me olhou intrigado e perguntou por quê. “Para o vento não te levar!”. Ele estava sem camisa e dava para ver que não tinha barriga nenhuma. Não estava mais magro de doente, mas ainda não estava com a pele toda preenchida. Ele pensou sobre aquilo, saiu no quintal, avaliou o vento, voltou para dentro de casa, saiu de novo, voltou para dentro de casa e destrocou a roupa de praia. “Não quero mais ir não vó, está ventando muito”.

A mãe ficou louca de braveza. Vai causar um trauma no menino! Agora vai lá resolver! Peguei ele pela mão e levei para o quintal. Levantei ele e soltei no vento. Caiu reto, sem sair um centímetro do lugar. Viu filho, não vai voar não, o papai estava brincando. Ele aceitou. Trocou de novo a roupa para ir à praia e foi. Por precaução, colocou uma pedra em cada bolso da bermuda.

Já expliquei para ele várias vezes que o vento precisa estar muito forte para conseguir arrastar uma criança ou um adulto, mas até hoje de vez em quando, quando ele precisa sair e tem um pouco mais de vento, ele coloca alguma coisa nos bolsos. Não precisa ser uma pedra, mas ele carrega algo. Às vezes é uma bolsinha com algumas coisas que ele não vai precisar. Não sei se é consciente mais, mas ficou como hábito. Está ventando? Pega um casaquinho para caso esfrie e coloca alguma coisa nos bolsos para não voar.

Pântano

Acontece de de vez em quando se estar em um lugar muito ruim. Não um lugar fedido ou sujo ou desconfortável. Não um lugar físico muito ruim. Apesar de de vez em quando isso acontecer também, mas não é à isso que me refiro. Estou falando de um lugar ruim dentro da cabeça. Um lugar onde parece que o coração está partido, mas nada o partiu de verdade. Um lugar em que acontece de não nos sentirmos nós mesmos, de não parecer que temos a vitalidade que temos e nem a vontade que temos, para nada. Não tenho um nome oficial para isso. Minha terapeuta chamava de um lugar de depressão, mas não que se está em depressão, só que de vez em quando passamos por lá e as coisas não ficam muito legais. É aquela tristeza triste que bate e não se sabe de onde veio nem o que significa. Não é um lugar legal, é um lugar um tanto ruim.

Aconteceu esses tempos de eu ir parar nesse lugar. E digo parar pois acabei ficando por lá mais tempo do que normalmente fico. As coisas perderam a cor. Os cheiros não mais interessavam, até parei de senti-los. Qualquer som era ruído. Tudo perdeu a graça. Quando acontece de passar por lá, busco o que me tira de lá e só saio, com calma e paciência, pois não é o meu ritmo que vai ditar essa saída, mas o ritmo que me for permitido pelo que me levou até esse lugar. Dessa vez não foi assim. Busquei o que me tira e não consegui sair. Como se eu estivesse abaixo da superfície de um lago que congelou e pudesse ver tudo acontecendo lá do outro lado, mas não conseguisse sair. Nesse caso, eu era um pouco aquaman, pois conseguia ficar embaixo da água sem morrer, o que não é uma verdade e por favor não tentem isso em em hipótese alguma, foi só uma figura de linguagem. Vou tentar outra, menos perigosa. Foi como se eu estivesse atrás do espelho, do outro lado de uma janela de vidro, onde eu enxergava o que estava acontecendo do lado contrário, mas ninguém me enxergava ali na minha prisão semi transparente. E a sensação era essa justamente porque eu não conseguia sair dali e ninguém me percebia ali. Me viam, me acenavam, mas não notavam que eu estava preso e em desespero. Eu acenava de volta, mas não tinha mais forças para pedir ajuda. E não pedi. Então só fui ficando lá.

Não digo que foi uma depressão clínica, pois não tenho quinhão para isso, mas foi uma depressão. Uma depressão no sentido de que os meus sentidos e sentimentos ficaram fracos. Não tinham forças para sustentar-se e eu não tinha força para sustentá-los. Eu não me abri para ninguém, pois a porta para deixar alguém entrar e me ajudar estava tão pesada que eu não conseguia nem mesmo move-la de onde estava. E então ninguém veio.

Mas, assim como a ansiedade, que vem e vai e eu não morro nesse meio de caminho, eu sabia que conseguiria sair desse lugar. Ele também vem e vai e sempre consegui sair dali. Sabia que era uma questão de tempo. Como um pântano que precisava atravessar, com seus atoleiros e humores não muito agradáveis. Mas em algum momento ele acaba. Exceto se estiver em Dagobah, mas aí é outra história e no final você sai de lá um Jedi ou não sai at all. Mas acho que depois de sair de qualquer pântano, seja ele físico ou emocional (ou Dagobah) acabamos nos tornando um pouco mais Jedis. Descobri que o meu pântano estava acabando quando decidi ir à praia e ficar lá, em um dia sem sol, mas com os pés na água, sentindo o mar lavar meus pés. Senti a maré subir e descer, o vento arrepiar meus braços e costas. E senti que os humores do pântano já estavam ficando mais leves.

Repeti a dose algumas vezes, senti vontade de pedalar de novo, comecei até a correr, algo que simplesmente não gosto de fazer. E assim o lodaçal foi ficando mais sólido, as cores começaram a voltar e reaparecer, os ruídos voltaram a ser risos. Demorou tanto que considero que algo mudou em mim. Algo muito profundo. Não sou a mesma pessoa de quando entrei nesse pântano figurativo. Considero que não saí sozinho, mas deixei-me conduzir para a saída. Deixei que minha própria vida me levasse de volta para a praia, para a beira do mar, e assim saí de onde estava. Ainda não consigo tirar minha nave espacial de dentro do atoleiro para voltar para casa, mas acho que sinto-me um pouco mais Jedi.

Ps.: Eu simplesmente ignoro toda a qualquer alteração feita na história original dos Jedis, considerando somente os episódios IV, V e VI, seguidos dos I, II e III. Depois disso, o resto é entretenimento.

Fuga da galinha

Mais uma vez vou escrever sobre galinhas. Sinto que não será a última. Sinto no sentido de sinto muito, não no de achar que algo será de alguma forma. Assim sendo, sinto muito mas não será a última vez que vou escrever sobre galinhas. Também não é a última vez que vou dar voltas para falar algo que poderia ser escrito em muito menos do que uma linha, mas é que de vez em quando gosto de complicar o que é simples. Assim sendo, sinto muito por isso também. Mas não sinto de verdade, é só para justificar-me, pois não vou deixar de fazer.

Então vou escrever sobre galinhas. Especificamente uma aventura que uma delas viveu. Sabe aquela que é coxa, que mencionei lá da primeira vez que falei sobre galinhas? Então, ela sumiu um dia desses, bem no meio da tarde. A esposa ficou desacorçoada. Minha filha andava pelo quintal chamando a galinha, mas de tempos em tempos esquecia que estava procurando a galinha e procurava flores, voltando para dentro de casa sem galinha, mas com um pequeno buquê. E a galinha? Ué papai, as galinhas ficam lá fora! Bem abalada assim. Meu filho não percebeu nada, pois estava dormindo com otite. Só ficou sabendo de tudo no dia seguinte.

A galinha sumiu, do meio para o final da tarde, que é quando elas vão sozinhas para dentro do galinheiro e se aninham para dormir. Ela não apareceu para a cerimônia, o que significa que deveria ter se arranjado por algum outro canto, caso ainda estivesse viva. Minha esposa teve uma aula e saiu de casa durante algum tempo. Quando escureceu perguntou por mensagem se a bendita galinhas já tinha aparecido e se eu achava que ela estava viva. Não digo que sim nem que não, respondi, só digo que ela não está aqui agora, mas pode ser que amanhã apareça! Ela ficou triste e me mandou um desenho de coração quebrado. Terminei de lavar a louça e de dar jantar para as crianças. Não tinha o que fazer, o passarinho não estava no quintal e eu não conseguiria ir atrás e deixar as crianças em casa com fome no final do dia. O passarinho teria que esperar.

A esposa chegou, a rotina seguiu. Depois de tudo pronto, naquela hora em que nos sentamos para conversar no final do dia, alguém grita no portão “Vizinha! Entrega!”. Entrega? Mas não tinha nada chegando hoje, será que era algo que estava na casa dela desde outro dia? Saí para atender a vizinha. Ela estava segurando algo que parecia um embrulho visto na penumbra da noite, que só consegui distinguir o que era depois que ela perguntou “essa galinhazinha é de vocês?”. A galinhazinha era nossa.

Agradeci e expliquei que estava sumida desde o final da tarde, mas não achávamos ela em lugar algum, então decidimos esperar até o dia seguinte. Cheguei em casa e ela estava dormindo em cima da minha mesa na garagem, disse a vizinha, que gentilmente coletou a galinha coxa (e que de vez em quando é fedida) e veio nos chamar para fazer o tira teima. Enquanto a troca acontecia, o cachorro dela viu um dos nossos gatos e entrou correndo pelo quintal. O gato foi mais rápido e fugiu para o terreno do lado, mas o cachorro não deixou de marcar território e fazer xixi em uma das árvores.

Colocamos a galinha dentro do galinheiro e o gato apareceu de volta. Como se nada tivesse acontecido, a galinha foi empoleirar-se com as outras e ter uma boa noite de descanso depois da incursão no vizinho. Não sabemos ainda como ela pulou para lá, visto que o muro é algo e ela tem as penas de uma das asas podadas justamente para não voarem alto, fica então o mistério. Chegamos a conclusão de que damos muito trabalho para os vizinhos, mesmo sendo um só.

Inconformado

Estive muito inconformado durante o ano passado todo. Principalmente na segunda metade do ano, quando aconteceram alguns fatos na vida privada e no mundo que mexeram comigo de forma a me deixar ainda mais inconformado. Assim sendo, terminei o ano inconformado. Não tem outra palavra para isso, pois não era bravo nem irritado, mas inconformado. Aquela expressão de não entender o que estava acontecendo e ao mesmo tempo não aceitar que aquilo era uma verdade, que meus olhos estavam vendo aquilo, ou meus ouvidos ouvindo. Ardia por dentro, mas não era de fúria, era de inconformação mesmo.

Viajamos em família no final do ano para fugir do movimento onde moramos, que é um lugar deveras turístico. Não adiantou muito, pois já existia muito movimento antes e continuou existindo depois. O movimento só reduziu mesmo nesta última semana, e já estamos na segunda quinzena de março. A temporada de férias foi longa, mas sempre é. Então o fugir do movimento foi para fugir do movimento durante os dias que envolvem a virada de ano, que são muito mais ativos por aqui. Essa viagem ajudou a me resetar, colocar um pouco de panos quentes na minha inconformação, dar fôlego para enfrentar o que mais estivesse por vir.

Então ao voltar, fiquei novamente inconformado. Mas dessa vez a inconformação era mais branda, poderia dizer até que ela tinha um caráter quase de iluminada. Não era iluminada de forma alguma, era inconformação pura e simples, com vontade de xingar em algumas situações e de sumir em outras, mas em geral ela acabava resumindo-se em uma expressão que representa uma dúvida profunda, como se um nó se formasse a partir do nariz e se espalhasse pelo rosto. A cabeça fica levemente inclinada e aí temos, a expressão de inconformação que no fundo é uma dúvida do tipo “não é possível que estou vendo isso”, junto com a sensação de que os olhos vão pegar fogo com o que se vê. Não, não vou dar exemplos. Cada um que pense nos seus exemplos do que lhes deixa inconformados, não vou denunciar nem reprimir ninguém aqui. Este é um espaço de livre expressão, mas não me culpe se algum tipo de expressão me levar a responder com a posição facial acima mencionada. Pode ser mais forte do que eu, inevitável.

Ainda estou inconformado com algumas coisas, mas o dia a dia me leva a não pensar muito nelas, acabando que só fico inconformado quando tropeço nelas pela vida. Ainda não entendo, não aceito, muito do que acontece mundo afora, mas não tenho como evitar então só torço o nariz e tento não tombar a cabeça, para não ser uma expressão tão marcante, mas acaba sendo mais forte do que eu algumas vezes. Talvez esse seja o segredo, não prestar atenção no que está acontecendo lá fora, focar em resolver-se só aqui dentro, e caso tropeçar em algo, torcer o nariz, desviar e seguir em frente. Não olhar para cima, por assim dizer.

Estações

Hoje de manhã entrei no mar e a água estava muito gelada. Gelada de doer os ossos. E ao sair, me sequei muito rápido ao sol que estava forte, ardendo como se estivéssemos em pleno verão, mesmo que já estejamos em vias de começar o outono. Depois de algumas semanas com calor intenso, agora no meio da tarde o tempo começa a virar. Era previsto que isso iria acontecer, que o calor não iria sustentar-se por muito mais tempo, mas já fazia um tanto que não via os elementos revoltos assim, com a chegada do vento frio que vai romper o calor e simplesmente iniciar o outono de uma vez, com uma virada de algumas poucas horas. Ele sopra com força, alguma constância e muitas rajadas. A cada rajada fico esperando para ouvir o barulho de uma porta batendo ou algo caindo das prateleiras. Nem sempre acontece, e conforme acontece algumas vezes a tendência é que aconteça menos, visto que vamos resolvendo cada um destes pequenos acidentes e deixando a casa pronta para os ventos do outono. É como preparar a casa para receber uma visita, mas que só sabemos o que está fora do lugar quando a visita nos aponta, ou neste caso, empurra para derrubar ou fechar.

Quando nos mudamos para perto da praia e tivemos a nossa primeira experiência com os ventos do começo do outono, foi um tanto assustador. Eu sabia o quanto de vento a nossa casa antiga aguentaria, mas eu não fazia ideia de quanto a casa em que estávamos havia sido projetada para suportar. Relembrei que não é tão fácil assim destelhar uma casa ou derrubar uma árvore, desde que estes estejam solidamente estabelecidos, a casa de boa construção e a árvore bem nutrida. O lobo precisa soprar realmente muito forte para conseguir derrubar as casas modernas. E ficou tudo bem naquele ano, e em todos os outros que se seguiram, me lembrando que os ventos merecem respeito pelo que representam, mas não medo pela força que tem. A força contida neles deve ser adorada, venerada, pois é a força da mudança, a força do mundo seguindo em frente, não importa o que façamos com ele. E todos sabem que fazemos muito. Mas ele segue em frente e sopra seus ventos fortes.

Aprender a enxergar as rajadas foi um dos grandes benefícios práticos que aprender a velejar me trouxe. Para velejar, enxergar as rajadas de vento trazem benefícios se soubermos usá-las, mas também servem para nos protejer quando ainda não sabemos aproveitar todo o potencial delas. Os benefícios óbvios são os ganhos de ângulos e velocidades sem precisar lutar contra o vento, mas a favor do vento, mesmo quando se veleja contra ele. Além disso, aprender a usar as rajadas pode ser o grande diferencial entre ganhar ou perder uma regata. Todo velejador deve ter alguma história empolgante de como utilizou algumas rajadas de vento para conseguir ganhar altura em um contravento ou velocidade no popa. E da mesma forma, todo velejador também deve ter alguma história de como estava no limite e uma rajada não antecipada o fez passar desse limite e virou o barco ou exigiu uma manobra que o fez perder muita velocidade. As rajadas fazem ganhar e perder regatas, para quem sabe e não sabe usá-las. Mas voltando para o dia de hoje, ouço a rajada de vento chegando pelas árvores atrás de mim e vejo-a empurrando as árvores a minha frente. Algumas parecem que vão levar a casa, mas não chegam nem a encostar nela, passam ao largo, deixando só uma brisa entrar pela janela. Outras empurram as árvores às minhas costas contra a casa e batem em cheio nas janelas, fazendo os batentes ranger e as frestas assobiarem. Estou de costas para elas agora, mas quando estou de frente consigo me preparar para cada uma delas, sabendo até se aquela que vem ao longe vai ter força para chegar até onde estou ou não. As folhas das árvores funcionam como a superfície da água para nos contar esses segredos do vento, basta olhar e saber o que se está procurando.

Amanhã não vai dar praia. Até porque é segunda feira, dia de escola e trabalho, então já não ia dar praia mesmo. Mas digo que não vai dar praia porque a previsão diz que o vento sul, frio e seco, chega para ficar. Ela vai deixar o céu nublado hoje e talvez amanhã também, e muito mais frio do que estava, quase cinco graus mais frio. Essa é a semana para resguardo do sistema imunológico, para enfrentar a mudança rápida de temperatura, do verão que acaba de uma só vez e o outono que chega também de uma só vez. Só acabam e chegam. Para quem não olhou a previsão do tempo, essa mudança é sem fundamento. Mas para quem já estava aguardando ansioso pelo mensageiro do polo, esse vento é o presságio de bons tempos. Tempos alinhados com a estação do ano, com o momento. Não deveríamos ter mais tantos dias seguidos com temperaturas acima de trinta graus aqui nessa época, mas era o que estava acontecendo. E o suor estava brotando na testa sem nem mesmo precisar que eu me mexesse. Só por existir, ele brotava. De hoje em diante acho que vai dar para dormir com um lençol sobre o corpo.

Fundo sonoro

Sento-me para escrever logo cedo, com o sol despontando. O escritório fica no quarto mais alto da casa, acima dos quartos de dormir. Deveria ser um bom silêncio, só com o som dos passarinhos cantando, dependendo do vento também escutaria o som do mar. São antes de seis horas da manhã em uma cidade onde a maior parte das coisas só começa às oito ou nove horas da manhã. Paz.

Basta o sol começar a esquentar o telhado que o forro vira uma polvorosa festa de passarinhos se deslocando, tentando sair dele para o céu lá fora, buscar seus alimentos, correr atrás de predadores, festejar entre si. Não sei se é bem isso que os pássaros fazem, mas é o que imagino que estejam saindo para fazer, como crianças quando toca o sinal para o horário de intervalo, que segundos antes estavam preparadas para correr entre as carteiras, mas os colegas da frente também estavam e assim trombam-se e derrubam cadeiras e deslocam mesas e gritam e correm pelos corredores em liberdade, em direção à quadra esportiva, à cantina, ao banheiro. Não sei exatamente em direção à quê, pois eu era dos chatos que ficava esperando os desesperados saírem para só depois me expôr ao perigo de ser atropelado. Sim, por isso era considerado um dos chatos.

Mas o objetivo não é comentar as crianças da minha infância, meus colegas de classe, mas sim os passarinhos. Eu os imagino correndo pelos vãos entre o forro e o telhado da mesma forma que aquelas crianças. Trombando entre si, desviando uns dos outros e tentando sair o mais rápido possível para o céu lá fora.

Assim, a minha paz, a minha tranquilidade, simplesmente acaba quando o sol esquenta o telhado. Depois disso os vizinhos começam a acordar, os demais viventes da casa também. A rua começa a ter movimento, cachorros latem, gatos miam, pessoas falam e gritam. E o silêncio foi embora, junto com o som das patas dos passarinhos. Também começo a ouvir o barulho de automóveis, principalmente os ônibus que passam aqui perto.

No final do dia, muitas vezes, consigo refugiar-me novamente no escritório. No finalzinho da tarde, quando o sol está para se pôr. Um horário delicioso para escrever, com os passarinhos cantando o final do dia, pouco movimento na rua, pois muitas atividades encerram por esse horário então as pessoas estão se deslocando. Os entregadores de moto ainda não começaram a circular. Reina um tempo de silêncio. Pouco tempo. Pois os passarinhos, a essa hora, voltam para seus ninhos. E muitos deles ficam entre o forro e o telhado do escritório. E todo aquele polvoroso movimento da manhã se repete, com uma diferença: de manhã eles só querem sair, enquanto de tarde eles querem chegar, arrumar alguma coisa dos ninhos que pode ter mudado, andam para lá e para cá, parece até mesmo que ciscam no forro, mas não para encontrar comida, só de pirraça comigo mesmo.

Como o forro fica alto, o cômodo foi construído pensando em deixar o forro longe do chão para não esquentar tanto todo o ambiente, então também não consigo chegar até ele para dar as pancadas que teoricamente, conforme filmes e desenhos animados, poderiam assustar as pequenas e barulhentas criaturas que moram sobre a minha cabeça. Tenho que deixá-los em paz, pois gritar também não resolve. E jogar coisas torna-se perigoso, pois qualquer um conhece algum dito popular sobre cuspir para cima e cair na testa. Assim sendo, deixo-os em paz. Mesmo que eles não me deixem em paz.

Mais tarde no dia, de noite já, os tais pássaros que moram no forro sossegam. Salvo quando a noite é quente, mas isso é um outro caso. O que acontece daí é que os cachorros de toda a vizinhança estão acordados. Já tive cachorros, e sinceramente, não sei o que acontece com esses animais nas outras casas. Na minha casa eles dormiam durante a noite e ficavam acordados uma parte do dia. Nas vizinhanças onde morei sempre foi o contrário. Os cachorros dorme durante o dia e passam a noite latindo e uivando uns para os outros. Uivando, como se estivéssemos em meio à uma grande alcateia de lulus da pomerânia e shitzus. Não sei se são essas as raças dos cachorros dos vizinhos, mas é engraçado pensar em uma alcatéia de lulus da pomerânia. Imagine o terror que esses animais não causavam quando eram selvagens, correndo pelas matas com seus pêlos grudados em dreads pela sujeira do ambiente e o sangue das presas que eles conseguiam abater. E correndo atrás de outros animais, com seus pequenos olhos arregalados e bocas diminutas prontas para dilacerar o que quer que apareça pelo caminho. Material para pesadelos, eu imagino. 

Voltando aos cachorros. Hoje está difícil de manter o foco. Desculpe, aos pássaros! Não, espere. Estava escrevendo sobre o silêncio que não existe de noite também. Isso. Novo parágrafo, para corrigir a falha no começo deste. É o barulho que não permite que eu me concentre.

Além dos cachorros, existem então os seres humanos em volta. Parece que todos precisam comunicar-se por gritos. Não sei o que acontece, mas não é só nessa casa em que moramos agora. De uns tempos para cá parece que a comunicação gritada é a única forma de comunicação que existe. Sabemos tudo o que todos os vizinhos fazem, gostam, brigam. Um dos meus vizinhos não gosta de cebola, por exemplo, mas a mãe sempre coloca cebola na comida e diz para ele que não vai nem sentir o gosto, mas ele diz que sempre sente e que odeia. Daí ela o chama de ingrato e ele reclama alguma outra coisa. Batem talheres, ele agradece e fala que estava uma delícia, ela diz que é por causa da cebola. Imagino que nos escutam aqui também, pois não fazemos muito diferente. Eu tento, de vez em quando faço de conta que não estou ouvindo quando as crianças gritam, para ver se assim elas param de gritar e vem até mim para falar. Mas sabe o que elas fazem? Deixam de me gritar e voltam a gritar a mãe. Eles não estavam me gritando antes, só depois que a mãe mandou eles me procurarem e deixarem ela em paz um pouco, mas como eu não respondi, voltam para ela. Daí ela me grita para respondê-los e eu grito em resposta e assim todos os vizinhos já ouviram e devem me achar um mala que não dá suporte para a família. Não os julgo, deixo que eles me julguem. Mas eu gosto de cebola.

Black períodos

Quem quer ser estóico hoje em dia? ‘Que loucura, eu não’. Em tempos de black friday, cyber monday, black november, semana da black friday, descontos cumulativos, quem quer viver só com o que precisa e deixar de lado todo o resto que não precisa? Deixa disso, eu quero é a maquina de pão e o aspirador automático, junto com uma esteira e uma bicicleta ergométrica, para começar a fazer academia em casa e perder os quilos que vou ganhar comendo pão feito em casa todos os dias. Isso sim é que eu quero.

Quem quer ser estóico hoje em dia? Consumir o planeta é muito mais legal, com todas as novidades e gadgets e outras tantas coisas que dá para comprar, que vem da China e entregam na porta de casa! Que loucura essa ideia de viver só com o que se precisa, que insanidade. Não faz sentido! Sentido mesmo faz consumir tudo o que aparece pela frente. Afinal, não é para isso que serve o dinheiro? Comprar coisas até que elas não caibam mais nas casas para depois ter que mudar para casas maiores, que ficam parecendo vazias e podem ser repletas de mais coisas e repetir o ciclo, até que a fatura do cartão morde a bunda turbinada pelo AbShaper (não turbina a bunda, só o abdômen mesmo, mas o nome é legal e o impacto de mencionar a bunda também) e todo mundo aperta o cinto e pede aumento e troca de emprego e pronto, problema resolvido, volta-se a consumir desenfreadamente.

Fui uma vez a uma casa em que os armários da cozinha estavam repletos de aparatos novos em suas caixas lacradas. Os donos da casa continuavam usando as mesmas panelas e formas velhas enquanto itens novos ficavam nas embalagens originais juntando poeira e ocupando espaço. Nessa casa o problema estava na cozinha, mas já ouvi de outros lugares em que essa situação se repete pela casa toda. Meu pai tinha uma escova de dentes elétrica nova guardada na caixa e continuava usando a velha, que precisava de jeitinho para funcionar. Se comprou uma nova, que a coloque para uso. Se não precisava de uma nova pois iria continuar usando a velha, que não comprasse uma nova! O desperdício começa quando tiramos o produto da prateleira e o acolhemos em nossa casa. Se ninguém comprar o que não precisa, a cadeia não é alimentada pela demanda de nãocessidade (vide O Lorax, do Dr. Seuss), somente pelo consumo consciente. Pode ser até dos mesmos itens, mas só quando tornam-se necessários.

Um tempo atrás escolhi ter um guarda roupas enxuto. Um dos benefícios é que consegui ajustá-lo para só comprar roupas quando preciso repôr alguma que acabou. E se acabou, reponho com outra igual, pois é a que preciso. Pronto, problema não criado. Consumo, sim, mas consciente. Não preciso de vinte camisetas, seria exagero. Três são poucas pelo lugar onde moro (acontece não raramente de chover por uma semana), mas seis é uma quantidade ideal. Então não existe motivo para ter mais nem menos do que isso. Consumo, mas consciente.

Seria hipócrita de minha parte dizer que não comprei nada durante o período de black dias. Sim, comprei. O que precisava, aproveitando que havia uma redução de preço. Nada do que comprei ficará guardado sem uso, pelo contrário. São itens que entram na minha casa para substituir algo que acabou ou para preencher uma falta que já existia. Compras planejadas pela necessidade de uso e não pelo consumo impulsivo. Nenhum foi uma máquina de pão. Não tenho a casa minimalista que gostaria, mas acho que consigo trazer bastante consciência para o consumo que temos. Não só meu, mas de todos aqui.

Hoje moro em uma casa grande, mas ao mesmo tempo pequena. É grande para os padrões de casa que são construídos atualmente, mas é pequena comparada com outras casas que já morei. E acontece algo interessante aqui. Como a casa é relativamente pequena para a nossa família de quatro pessoas, não há espaço para o que não tem função. Isso nos obriga a pensar muito bem antes de trazer algo para dentro de casa. E além disso, ainda nos incomodamos com coisas paradas, sem função, ou que poluam o visual do lugar. Assim sendo, mesmo tendo só o que buscamos usar, constantemente nos desfazemos de muitas coisas. Não sei nem de onde vem tantas coisas, mas elas vão indo embora conforme não tem mais utilidade para nós. E sempre seguindo a ordem: venda, troca, doação, reciclagem, descarte. Só existe o descarte se nenhuma outra alternativa é viável. A maioria das vezes as três primeiras alternativas resolvem, mas algumas vezes precisamos chegar até a reciclagem. Pouquíssimas vezes precisamos ir até o descarte.

Quem quer ser estóico hoje em dia? Eu quero. Não me incomodo com o muito, mas com o inútil. Ser estóico não é viver com nada, mas com o que é necessário. Ser estóico é viver muito além daquilo que se tem, buscando a plenitude de ser acima da necessidade de ter. Ser estóico é muito mais do que isso que escrevi aqui, mas já é difícil de aceitar só dentro do contexto que mencionei, então imagine no restante da aplicação da vida. Não sou estóico, mas pode ser que um dia chegue a ser.

Sem assunto

Escrevo sem ter o que escrever. De novo. Parece uma pequena praga. Como se os dias estivessem muito embaralhados, bagunçados, desordenados. E com isso a cabeça fica embaralhada, bagunçada e desordenada. Um verdadeiro caos, de dentro para fora e de fora para dentro. Você pode imaginar. Ou não, se a sua vida for muito certinha. E chata. Aquela vida chata em que se sabe tudo o que vai acontecer o tempo todo. Eca! Mas ao mesmo tempo, socorro! A imprevisibilidade não me deixa descansar a mente de noite. Sou controlador. Gosto de saber o que vai acontecer. Como e quando também. E quem estará envolvido. Não sou controlador. Mas os outros acham que sim. Considero-me organizado. Por vezes tão organizado que o espaço que deixo para outros participarem é pequeno e desconfortável. É o caixote no canto do armazém, que tem pontas de prego saindo pelas laterais, é mais alto ou mais baixo do que a altura ideal para sentar-se e é meio bambo. Sabe? Não? Qualquer dia posso te convidar para sentar-se nele. Não é confortável e, a não ser que você seja sádico, não vai querer voltar.

Me incomoda que não consigo fazer o texto ficar distribuído por igual nas linhas, daquele jeito que fica alinhado dos dois lados da página. Só vejo a opção de alinhar de um lado ou do outro, ou ainda aquele formato grotesco de alinhar tudo pelo meio, e então cada linha começa e termina onde quer. Céus, é como se fosse o caos instaurado em cada parágrafo. Não tem como saber onde uma linha irá terminar e onde a outra irá começar. Peço desculpas a você que chega aqui esperando algo um tanto mais previsível ou coerente. Aqui não há previsibilidade nem coerência. Se houvesse eu dormiria e descansaria de noite. Mas não há, então nem durmo nem descanso. E caso continue aqui pode ser que isso afete você também. Assuma por sua conta e risco, não responsabilizo-me pelas consequências das falhas as quais não consigo corrigir. Eu tentei, juro que tentei. Mas o editor é intratável e não quis conversa. As opções são as três supracitadas. Assim como você, tenho que contentar-me com aquela que me parece menos sofrível.

Voltando ao tema de não ter tema, existem várias questões para serem discutidas. Posso escrever sobre a beleza, a pureza, a natureza ou qualquer outra eza, mas não são os temas que eu gostaria de colocar em texto agora. Parece que não vou conseguir produzir algo bom ao tentar explorar esses assuntos. Existe a possibilidade também de escrever alguma história, relatar algum acontecimento, inventar um conto com um pouco de realidade e muita ficção. Ou o contrário, que também é válido. Parece que fiz isso já, mas não sei o quão bom ficou. E como estou sem assunto, fico também inseguro de escrever uma historinha sem saber se ela ficará boa de verdade ou não. Minha esposa lê e diz que gosta, mas pode ser aquela coisa igual de mãe que sempre diz que o filho é bonito, mesmo ao nascer, com aquela carinha de joelho, a testa franzida, os berros banguelas. Pai também acha os filhos lindos, mesmo quando ainda não estão tão lindos assim. Os meus são lindos, desde que nasceram. Talvez ela só não queira me magoar, afinal moramos juntos. Quem vai tropeçar no meu bico e resvalar no meu mau humor é ela. Então não sei se conta muito. Um outro dia escrevo uma outra história e coloco aqui e abro uma caixinha de avaliação para quem quiser avaliar. Não tem isso? Está vendo, o editor é intratável. Sinto muito. Mas de qualquer forma, teria que ser um outro dia, pois hoje estou sem assunto.

Temos aqui em casa um folheto que vira um cartaz que tem os nomes junto com as fotos de uma boa quantidade de passarinhos que vivem na mata atlântica. Como estamos em uma cidade que fica onde antes era mata atlântica parece que alguns deles teimam o suficiente em ficar voando pela cidade, aparecendo perto de casa e nas praças. Em geral são pássaros pequenos, coloridos, de canto bonito. E quando aparecem não conseguimos ver no nosso folheto/cartaz/guia qual é o passarinho, pois meu filho gostou tanto do folheto/cartaz/guia que ele guardou em uma pasta, dentro de uma bolsinha que está dentro de uma bolsa maior que por sua vez fica no armário dele, por trás de uma caixa de tesouros. É para a irmã não mexer. Mas daí ninguém mais mexe também, nem ele. E quando conseguimos convencê-lo a pegar o tal guia de passarinhos e depois de ele vencer todas as barreiras que criou para proteger seu tesouro, já esquecemos qual era o passarinho e não conseguimos identificá-lo. Vale a tentativa, no entanto. Sempre nos rende alguns minutos vendo as imagens de todos os passarinhos e lendo seus nomes e meus filhos escolhem quais gostam mais (de todos) e depois ele guarda na pasta, que vai dentro da bolsinha que é colocada dentro da bolsa maior que fica no armário dele, atrás de uma caixa de tesouros. Muitas vezes ele esquece o que tem nessa bolsa e, quando arruma o quarto e tira tudo e espalha pela cama e pelo chão encontra algum tesouro fantástico que nem lembrava da existência. E assim arrumar o quarto, para ele, é algo que leva um dia inteiro. O que o faz ficar muito intrigado de como eu levo menos de uma hora para arrumar todo o meu armário. “Por que você não guarda tanta coisa papai?”. Algumas perguntas devem ficar sem respostas, para que cada um perceba por si o resultado.

Bem, vim até aqui, e espero que você também tenha vindo até aqui, sabendo que não havia assunto algum para ser escrito. Sempre há algum devaneio ou ideia, mas assunto mesmo não tem. Final de ano, sabe como é (com um sorriso sem graça e uma levantada de ombros, tombando um pouco a cabeça para um dos lados). Espero que, se você tinha esperança de que os textos que haveria de ler aqui fossem bons ou teriam um tema de interesse conforme prometido anteriormente, não perca a dita esperança. Dizem que ela é a última que morre. Não vamos matá-la! Prometo escrever de novo, quem sabe da próxima vez com algum tema.

Rebanho

Temos um galo, que cuida das galinhas. A ideia era ter galinhas, mas como tudo sempre precisa de um acompanhamento, temos um galo. Foi como tentar comer hambúrguer sem batata frita. Se alguém já tentou sabe do que estou falando. Pode até ser que tenha passado pela experiência e achou no final que deu tudo certo, pois quando terminou de comer não estava tão cheio quanto estaria se tivesse também comido batata frita, mas exceto se a pessoa tiver alguma restrição alimentar que envolva a impossibilidade de comer batatas fritas, vai sentir falta e na próxima vez que comer hambúrguer vai comer também batatas fritas. E assim, temos um galo.

Vou começar do começo. Eram três pintinhos, que eram para ser três galinhas. Mas como não sabíamos, e ainda não sabemos, como ver se o pintinho vai ser galo ou galinha, ficamos com os três juntos. Eles cresceram e em poucas semanas já dava para ver que dois deles seriam galos. Poxa, uma galinha significa um ovo só por dia. Queríamos três. E três galinhas, para que elas fossem amigas das crianças e tudo o mais. Mas dois eram galos e um era galinha.

Deixamos eles crescerem para ver no que ia dar. Pouco tempo depois, a galinha nem estava botando ainda, o jardineiro nos ofereceu duas galinhas e três galos. Havia toda uma história por trás dessa disparidade, mas o motivo de estar oferecendo todas essas aves para nós é que os galos estavam cantando na janela da sogra e ela não estava feliz com isso. Aceitamos, pois estávamos muito empolgados com a ideia de agora termos, finalmente, três galinhas. Então uma noite, depois que as crianças já estavam dormindo, ele chegou com um saco contendo três galos. E as galinhas? Essas são mais difíceis de pegar, então só pegamos os galos por enquanto.

Deixei os galos na gaiola que tínhamos aqui e cobrimos para que eles dormissem no escuro. Antes das quatro horas da manhã eles já estava cantando. Ri muito e acordei para fazer meu café enquanto ainda estava escuro e muito tempo antes do despertador tocar, pois a gaiola estava no meio do pátio, embaixo da janela do meu quarto. Falha minha. Durante o dia minha esposa os levou até o local onde ela trabalha, que tem uma infinidade de galos e galinhas. Poderia até mesmo dizer que tem uma horda de animais. É um sítio e já estava combinado que eles iriam para lá, os galos, e nós ficaríamos com as galinhas.

O tempo passou e as galinhas não vieram. Minha esposa ficou brava. Fala com ele, ela me disse. Cobre eles! E eu cobrei. Vem aqui que nós pegamos elas juntos, é difícil de pegar sozinho. Então um dia de final de semana, voltando de um almoço fora, passamos na casa do jardineiro e ajudei a pegar as galinhas. Nos ralamos de monte, eu e o jardineiro, pois as galinhas são pequenas e correm como nunca vi uma galinha correr antes. É como se injetassem nitroglicerina nas pequenas perninhas quando vão correr e saem em disparada. Se não for encurralada, não pega de jeito algum. Minha esposa desfilou com as galinhas no colo até em casa, com as crianças andando do lado dela. Todos muito felizes, exceto as galinhas, que reclamaram o caminho inteiro.

Colocamos elas junto com a outra galinha e os dois galos. E foi a partir desse dia que percebemos que dois galos para três galinhas era meio que muito. Eles bateram nas galinhas e entre eles até decidirmos que somente um poderia ficar. Observado o comportamento, escolhemos aquele que parecia ser mais protetor das galinhas, que avançava nos gatos quando passava por perto e que era um pouco menor, para não machucar as galinhas, que eram tão pequenas. Ficou um e foi embora o outro. Levei ele em um saco para o sítio onde minha esposa trabalha e ainda vemos ele toda semana. É um galo muito bonito. Os dois são, mas um é branco, o que foi embora, e o que ficou é marrom. Segundo minha sogra, é índio. Mas não é. Só é marrom mesmo.

Pouquíssimo tempo depois, estávamos comendo em um restaurante rural e meu filho ganhou um pintinho que estava quase morto. Ele tinha uma doença que dá verrugas no corpo e estava bastante debilitado. Demos o remédio para ele e viajamos no dia seguinte, torcendo para ele sobreviver. Minha sogra iria cuidar dele e dos outros. Ele ficou separado. Ela o levou para o seu apartamento, junto com a gatinha filhote que também estava em casa fazia pouco tempo. Passamos uma semana fora aproveitando as férias escolares enquanto ela passou uma semana pagando todos os pecados cuidando de bichos na nossa casa e na casa dela.

Por incrível que pareça, o pintinho sobreviveu. É feio que só vendo. Já virou uma galinha, então agora o rebanho é de quatro galinhas. Já até bota ovo. Mas é feia e coxa. Não sofre do mau de ser coxa mas bela, bela mas coxa. É feia mesmo. E coxa. Mas bota ovo!

Hoje, ainda a pouco, pegamos quatro ovos. Cada um tem um tamanho e uma cor. Todos aqui de casa sabem identificar qual é de qual galinha. Meus filhos pedem o ovo da galinha que querem comer. Claro que eles não fiscalizam o que fazemos, porque nem sempre tem o ovo da galinha que eles querem, mas é gostoso quando um deles pede que quer um ovo de Capuchinha mexido. Capuchinha é uma das galinhas. A feia e coxa é a Camomila. E as outras duas, que são garnisé e tem turbo no pé são as Vanessas. Não sei o motivo de chamarem-se Vanessas. Deve ter alguma relação com algo que passa na televisão ou artistas famosos, mas não temos essa cultura aqui em casa, então só chamamos de Vanessa preta e Vanessa branca, pois uma é preta e a outra é branca. E o galo é o chefe do rebanho. O grande índio (só que não), Hortelã. Para colocar todos no galinheiro é só levar ele que as galinhas vão atrás.

Então temos uma família de galináceos. Um macho e quatro fêmeas. E tem ovo todos os dias. E agora somos aquela família que de vez em quando dá ovos de presente para os outros e diz “são das galinhas lá de casa!”.

Escolhendo batatas

Passei os olhos sobre os títulos das postagens e li um que se chama “Escolhendo batatas”. Abri a postagem e li o texto completo. Não havia menção alguma às batatas. Então onde estariam as tais batatas? Não demorei tanto tempo quanto tento fazer parecer para perceber que havia confundido batalhas com batatas, mas acho que vale tentar brincar com isso. Deixo uma pequena ficção sobre escolher batatas.

Cheguei na cozinha e vi que havia um pedaço de papel sobre a mesa. Eu havia limpado a mesa antes de me deitar no dia anterior, então aquilo era novidade. Peguei o papel e reconheci a letra da minha esposa: “Compre batatas para acompanhar o peixe do almoço”. Certo, então eu teria que sair para comprar batatas no mercado. Teria que ser no mercado, pois como estava chovendo eu não ia até a quitanda, que é mais longe. O mercado é mais perto, então ele seria meu fornecedor de batatas para o dia. Abandonei o papel sobre a mesa novamente e virei-me para pegar a chaleira.

Levei um bom tempo para tomar o café da manhã, por mais que não estivesse comendo nada. Queria esperar para ver se a chuva parava ou diminuía para que eu pudesse ir ao mercado, mas nenhum dos dois aconteceu. A chuva aumentou e minha vontade diminuiu. Ainda assim eu deveria ir ao mercado, e o quanto antes, para dar tempo de passar também na peixaria, visto que as batatas deveriam acompanhar o peixe, e não havia nenhum dos dois em casa. Coloquei uma bermuda e uma camiseta, apesar de estar frio por conta da chuva, e vesti as galochas que ficavam na porta de casa. Elas não tinham direito de entrar, igual eu em alguns dias, quando voltava mais tarde para casa. Dormia no sofá que fica no quintal, para não incomodar minha esposa. Ela acorda cedo para trabalhar, eu não acordo cedo. As galochas não tinham autorização para entrar em casa nunca. Pensei que eu ainda estava melhor do que elas. Tranquei a porta de casa e vesti a capa de chuva.

Ao começar a caminhar lembrei-me que o pé direito da minha galocha estava furado. Mas só depois de ter pisado em uma poça mais funda, o que fez com que meu pé ficasse encharcado. Resolvi que era melhor não olhar para trás para não ver a cor da água que estava na poça. Em algumas situações é melhor não ter a informação completa. Ignorância pode ser uma benção. Eu teria que tomar banho quando chegasse em casa de volta, então o pé seria lavado em breve. Foi o único evento até chegar ao mercado. A capa de chuva não estava furada, então o corpo ficou só úmido. Andei pelo mercado pingando e molhando todos os corredores por onde passei. Só quando estava ali pensei que poderia ter ido até a peixaria antes, mas corrigi a ideia lembrando que lá eu me demoraria demais conversando com o peixeiro sobre histórias de pescador que nem ele nem eu vivemos. Ele por que é peixeiro, e não pescador. Eu por que não vou pescar a tanto tempo que nem me lembro direito como é isso. De qualquer forma, contamos nossas histórias e damos risada ou ficamos impressionados, mesmo sabendo que é mentira o que o outro conta.

Passei pelo corredor de doces e peguei um pequeno chocolate para comer antes de voltar para casa. Não podia levá-lo para casa pois minha esposa encontraria a embalagem e ficaria furiosa por não ter comprado um chocolate para ela e por ter comprado um chocolate. Ela não acha que eles são muito saudáveis, então não podemos comê-los. Vez ou outra percebo um cheiro de doce que vem dela, mas ela diz que é o seu perfume. Cheguei na seção de hortifruti. Era meio da manhã e estava chovendo, então aquilo estava fervilhando de senhoras que não conversavam entre si e tentavam empurrar os mais jovens com seus carrinhos. Entre elas não havia brigas, um respeito mútuo e velado acontece nessas situações entre iguais, mas já me aconteceu de ficar preso entre o carrinho de duas adoráveis senhoras que não quiseram arredar o pé de jeito algum, então ficamos os três empacados. Tenho uma política de não confronto, então naquela situação fiquei aguardando tudo se resolver sozinho em silêncio e com a mente em um estado quase meditativo. Digo quase pois elas reclamavam de mim e de toda a juventude e da nossa pressa e falta de paciência que nos metia em todos os tipos de problemas e atrapalhava a sociedade inteira e que iríamos destruir o mundo daquele jeito. Tudo isso enquanto me empurravam com os carrinhos de mercado, que chegaram enquanto eu escolhia tomates, depois de outro bilhete da minha esposa que estava sobre a mesa, em um outro dia.

Andando devagar, tomando cuidado para não encostar em nada nem ninguém com a minha capa de chuva que ainda pingava, cheguei à banca de batatas. Parecia que ela havia sido abastecida à pouco tempo, pois estava completamente organizada, com todas aquelas batatas muito regulares que não sei como os plantadores de batatas conseguem fazer. Uma vez vi em um vídeo que é possível moldar frutas usando barbantes e elásticos ou mesmo recipientes fechados quando elas estão crescendo ainda no pé. Mas não acho que os batateiros cavem as batatas para moldá-las enquanto estão crescendo, então continuo até hoje com o mistério de como as batatas ficam tão parecidas entre si e permitem que o repositor faça a pilha tão bem arrumada na banca de batatas.

Comecei a pegar as batatas sem escolhê-las. Não havia motivo para escolher batatas que são iguais. Não gosto de pegar a cestinha porque não gosto de pegar o que todo mundo pega. Já vi senhoras, daquelas que mencionei, cutucando o nariz enquanto empurravam seus carrinhos, o que me leva a crer que as pessoas podem cutucar o nariz enquanto carregam cestinhas também. E pelo padrão de limpeza das áreas de circulação do mercado, não acho que eles devem limpar as alças das cestinhas com muita frequência. Também não peguei sacolinha plástica pois havia sido proibido pela minha esposa. Era para não gerar mais lixo. E então passamos a comprar sacolinhas em rolo para colocar o nosso lixo, ao invés de fazer igual aos vizinhos que reaproveitam sacolas do mercado. Isso me fez lembrar que eu havia esquecido a sacola de pano, então teria que pegar uma sacola no mercado e uma na peixaria e depois sumir com elas na minha gaveta de sacolas escondidas, que é onde guardo as sacolas que acabo levando para casa quando esqueço de levar a sacola de pano para os lugares. Guardo as sacolinhas assim para evitar que minha esposa brigue comigo por causa delas. Então escondo-as e de tempos em tempos levo uma sacola de sacolas até o centro de reciclagem do bairro.

Enquanto eu pegava batatas um senhor se aproximou da banca. Percebi que era um senhor pois estava usando uma boina ao invés de bobs, que são aquela peças plásticas que as cabeleireiras colocam no cabelo das mulheres para enrolá-los. Sei disso pois minha avó sempre colocava bobs quando estava arrumando-se para algum evento, por exemplo o jantar de natal na casa dela. Então ela passava a tarde andando pela cozinha preparando frango, regando a leitoa e mexendo farofa, usando os bobs no cabelo. Só depois me dei conta do quanto isso era estranho, pois normalmente não encontrava idosos masculinos no mercado de manhã, só femininos. Os masculinos iam ao mercado durante a tarde. Não sei por que. Ele circulou a banca até chegar ao meu lado e quando estendi a mão para pegar mais uma batata ele estendeu a mão também e pegou a batata que eu iria pegar. Preferi deixar passar e estendi a mão para pegar outra batata. O mesmo aconteceu. Com uma agilidade incrível de quem está acostumado a roubar batatas das mãos dos outros ele pegou a batata que eu estava alcançando. Olhei para ele e estendi a mão para o outro lado, alcançando uma batata que estava bastante longe dele. Ele me olhou nos olhos e fungou. Não bufou, fungou mesmo. Quando trouxe a batata para perto de mim, ele estendeu a mão e eu lhe dei a batata. Fiz o mesmo com mais duas batatas, entregando para ele assim que trazia elas para perto de mim. Depois de pegar quatro batatas, ele segurou a manga da minha capa de chuva e me levou até a banca de chuchus. Eu peguei dois chuchus e os entreguei para ele. Ali a situação era a mesma da banca de batatas: todos os chuchus iguais empilhados perfeitamente, quase uma obra de arte. O repositor devia ter muito orgulho do trabalho que fazia, pois sempre que repunha as bancas fazia com esse esmero.

Depois de passarmos por várias bancas de legumes, com a situação se repetindo e eu ainda sem minhas batatas, ele virou as costas para mim e foi embora. Eu havia enchido o seu carrinho e continuava sem batatas. Voltei à banca de batatas e peguei cinco delas. Ninguém me olhava nem comentou nada. Olhei no relógio e vi que havia passado quase dez minutos pegando legumes para aquele senhor de boina.

Cheguei no caixa e depositei minhas batatas e meu chocolate. Ainda precisava passar na peixaria, mas a chuva não parou enquanto eu estava no mercado. Paguei e fui até a frente do mercado, comer meu chocolate sob a cobertura da marquise, para poder jogar a embalagem no lixo que fica ao lado da porta. Assim teria que me preocupar só com a sacola de plástico quando chegasse em casa. O senhor não estava em lugar algum, não o encontrei mais no mercado. Comi meu chocolate, coloquei o capuz da capa de chuva e fui até a peixaria. Lá conversei um pouco com o peixeiro mas tive que ser breve pois ainda precisava preparar o peixe para o almoço e minha esposa tem um tempo bem curto para conseguir almoçar em casa.

Depois de tudo pronto para o almoço lembrei que não havia checado minhas mensagens e e-mails ainda. Peguei meu celular, que deixo em uma gaveta no aparador da sala, e vi que tinha uma ligação e uma mensagem da minha esposa, avisando que não poderia voltar para o almoço e para deixar o peixe para a noite. Ele já estava no forno, quase pronto.

De noite minha esposa acabou se atrasando um pouco para chegar, e quando chegou correu para ligar a televisão no noticiário. Ela ria muito e não quis me explicar o que estava acontecendo. Pediu para eu prestar atenção nas notícias enquanto ela arrumava a mesa e esquentava o peixe. Não demorou para aparecer uma imagem minha na televisão. Era uma filmagem da câmera do mercado que gravou enquanto eu andava pela seção de hortifruti pegando legumes para aquele senhor de boina e que agora eu via que estava descalço e sem calças. Ele usava boina e camisa somente. A notícia também mostrou uma foto dele tirada de quando ele fora preso por andar nu em uma praça. E ao lado mostrava uma imagem fixa minha e dele escolhendo legumes pelo mercado e com a pergunta “Quem o estava ajudando a escolher batatas?”.

Escolhendo batalhas

A arte de escolher as batalhas não é tão simples quanto parece. Ela prega que se deve escolher aquelas batalhas as quais vale a pena envolver-se, visto que sempre que nos envolvemos em algo nos sujamos, pelo menos um pouco. Mas o que acontece é que as pessoas usam esse jargão como uma desculpa para não envolverem-se nas batalhas em lugar de envolverem-se com consciência.

Ao invés de brigar pela vaga de estacionamento, lute por um mundo de mais comunicação.

Ao invés de comprar todo o papel higiênico durante uma pandemia, pense em como você pode compartilhar o que tem a mais ou ajudar quem não consegue ter o básico necessário, dividindo o seu papel higiênico.

Ao invés de gritar com seus filhos quando fazem algo errado, sente-se com eles e entenda o que aconteceu. Eles não vão entender o erro pelo seu grito, mas sim pela sua empatia, pelo seu exemplo.

Poderia listar muitos ao invés, mas seria um texto de ao inveses e não é essa a ideia. A ideia é mostrar que a frase que parece ser um passe livre para não envolver-se no que é complicado, em verdade é um convite para tal. É um convite para envolver-se nas batalhas difíceis, nas batalhas complexas, naquelas que tiram da zona de conforto, naquelas que valem a pena. Esse é o principal ponto, entender quando uma batalha vale a pena.

Mas quando é que ela vale a pena? Definitivamente não é quando outra pessoa o diz, pois não são os outros que escolhem por nós, mas nós mesmos. Então não é quando a decisão vem pronta que é necessariamente quando vale a pena. Então quando é que vale a pena?

Cada um sabe, ou pelo menos deveria saber, quais são seu valores, quais os temas mais importantes da vida. Para cada um isso será um pouquinho diferente, aproximando-se mais quando as pessoas fazem parte de um mesmo círculo social e afastando-se mais quanto mais distantes estão esses convívios. Então o que é que vale a pena? É aquilo que escolhemos valorizar. Se um dos nossos valores é paz, tranquilidade, bom relacionamento ou qualquer outra forma de elencar esse mesmo tema, brigar pela vaga de estacionamento não vai resolver. Não quer dizer que vá ceder cegamente, mas caso veja que a outra pessoa não tem o mínimo de racionalidade para entender o que está acontecendo, siga seu caminho e encontre outra. E pronto, o problema acabou aí, nem chegou a ser um problema. Em uma pequena ação a batalha foi descartada e agiu-se alinhado com o valor proposto. Se quero paz, promovo a paz. Não só pelo Instagram, mas pelos meus atos. Não são os outros que vão promover a paz por mim, mas eu mesmo.

E assim vale para todos os valores que se tem. Não percebemos se não dedicarmos um tempo para entender como cada um dos nossos valores influenciam nossas ações, se quando formulamos uma lista de valores não pensamos profundamente em cada um deles. São nosso mapa moral, nosso guia para escolher as batalhas certas. Assim sendo, não deveriam ser escolhidos levianamente, mas sim com muita cautela. E revisados, pois alguns daqueles valores que não formam a base de quem somos, aqueles valores mais superficiais, podem mudar com o tempo. Pode-se valorizar o amplo contato social por meios digitais quando se é mais jovem e depois de algum tempo isso deixar de ser um valor, uma vontade. A necessidade de fazer o maior número de contatos possível pode mudar, por exemplo, quando se tem filhos e se quer dedicar mais tempo à eles do que aos amigos. É natural que alguns valores mudem no decorrer da vida, mas normalmente são os valores mais superficiais. Aqueles que sustentam a moralidade e a ética individual tendem a não mudar.

Assim sendo, escolher suas batalhas tem um significado inesperadamente mais profundo. Puxa a necessidade de conhecer seus próprios valores para então agir em alinhamento com eles em todas as situações da vida, sejam elas de conflito ou não. Escolher as batalhas significar agir dentro do que se acredita, não fugir daquelas situações em que não se irá ter sucesso. Não é o sucesso que vai determinar a escolha, mas sim os valores que nos movem. E é daí que vem o sucesso, agir em direção ao que se acredita.

Cadernos

Fazem já alguns anos que mantenho cadernos de anotações. Escrevo ideias, sentimentos, o que está acontecendo, o que gostaria que acontecesse, o que não aconteceu. É quase um diário, e serviu com esse propósito em alguns momentos, mas não o considero como tal, pois tenho com esses cadernos um outro objetivo.

Ele funciona como a manivela de partida para a escrita. O atrito é o menor possível, ficando o caderno e o lápis à mão, prontos para escrever. Não há distração alguma, nem tem como haver. É pegar e trabalhar. Isso muitas vezes facilita escrever algum post ou alguma história, pois ali começo a movimentar o cérebro para gerar ideias, como se fosse o aquecimento para o trabalho de verdade. Não há notificações, navegadores de internet, sites de compras, sons, nada. É a página em branco e o lápis na mão. O que vem na cabeça vai parar ali. Pode ser uma indignação, uma vontade, um medo, uma experiência, qualquer coisa que me dê vontade de escrever, desde que me faça começar a escrever. E a maioria das vezes, depois de exaurir o que quer que tenha vindo para começar a movimentar, venho para o computador e consigo colocar algum outro texto na página, algo que se torne um post ou uma história. Ou pode ser quase uma continuação do que escrevi antes. Muitos textos nunca verão a luz do dia, mas nem por isso deixam de ser escritos.

Depois que preencho o caderno inteiro, deixo ele guardado por algumas semanas enquanto começo um novo. Só quando chego pela metade do caderno novo é que pego novamente aquele que já está cheio e começo a digitá-lo, transformar todos aqueles escritos em arquivo digital. E daí acontece de saírem novas ideias. É um reservatório, que quando menos espero acaba me devolvendo algo de maneira inusitada. E depois de transformados em arquivos digitais os cadernos físicos vão para uma gaveta, numerados e identificados. Ainda não sei o que fazer com eles, mas estão ali guardados. De tempos em tempos tiro todos e verifico se não estão sendo comidos por insetos vorazes.

Essa é uma forma que encontrei de evitar a tentação da distração. Quando venho para o computador já estou em um estado em que a mente está pronta para trabalhar, então não tenho a possibilidade de fugir disso, preciso escrever, preciso colocar as ideias na página. E quando fico sem ideias, volto para o caderno e escrevo o que vem à mente. Acontece de a falta de ideias às vezes ser na verdade uma ideia que ficou entalada e o caderno me ajuda a colocá-la para fora.

De tudo, o mais importante aqui é entender que cada um tem a sua maneira de chegar ao processo criativo. Eu fiz assim. Sei de pessoas que gostam de caminhar para ter ideias, inclusive esse era um hábito de muitos escritores. Outros gostam de contemplar a natureza. Cada um estimula o seu processo criativo de uma forma.

Vento

O vento sopra forte hoje. Vejo nuvens sobre o mar que correm como se estivessem com pressa de chegar a algum lugar. As árvores não conseguem mostrar sua verdadeira altura, somente sua flexibilidade, pois hoje não é dia de mostrar força. Contra o vento a força é inútil, só vai fazê-las perder galhos e mais galhos.

O vento que sopra é gelado, vem do sul. Trouxe chuva mas só por ter encontrado com o ar quente que estava por aqui. Ele é seco, cortante. Penetra em cada fresta da casa, acha por onde entrar. Quando menos se espera ele está aqui, esfriando a orelha entrando por uma pequenina fresta da janela.

Mas esse vento não é ruim, é bom. É muito bom. Esse vento limpou o ar que estava tão sujo que estava deixando até o sol estranho. O sol estava atrás de uma nuvem constante. No horizonte era possível ver a massa que estava nos cobrindo. Uma parede de sujeira que estava sujando o pulmão. Apesar de todas as nuvens, o dia está mais claro hoje do que esteve nos últimos tantos dias de sol em que não haviam nuvens de vapor de água. Só de sujeira.

Mas a sujeira é irreal, dizem alguns. Isso é normal, dizem outros. É a queimada do norte, mais outros. É a queimada na serra, alguns últimos. As justificativas são tantas que não é possível listá-las todas. A beleza do mundo é que cada um pode escolher a sua verdade e viver baseado nela. Outra beleza é que não é preciso discutir com quem não concorda com a sua verdade. Eu escolhi a minha, baseado no que entendi ser mais concreto, mas nem por isso vou forçá-la nos outros. Não preciso concordar com a verdade de ninguém e ninguém precisa concordar com a minha. Só os fatos é que não podem ser refutados, mas cada um escolhe também os fatos dos quais vai tomar conhecimento.

Enquanto escrevo o vento continua soprando. Ele não quer saber qual é a minha verdade, no que acredito ou deixo de acreditar. Ele não quer nada, ele simplesmente é. E contra essa existência plena não se discute.