Passei os olhos sobre os títulos das postagens e li um que se chama “Escolhendo batatas”. Abri a postagem e li o texto completo. Não havia menção alguma às batatas. Então onde estariam as tais batatas? Não demorei tanto tempo quanto tento fazer parecer para perceber que havia confundido batalhas com batatas, mas acho que vale tentar brincar com isso. Deixo uma pequena ficção sobre escolher batatas.
Cheguei na cozinha e vi que havia um pedaço de papel sobre a mesa. Eu havia limpado a mesa antes de me deitar no dia anterior, então aquilo era novidade. Peguei o papel e reconheci a letra da minha esposa: “Compre batatas para acompanhar o peixe do almoço”. Certo, então eu teria que sair para comprar batatas no mercado. Teria que ser no mercado, pois como estava chovendo eu não ia até a quitanda, que é mais longe. O mercado é mais perto, então ele seria meu fornecedor de batatas para o dia. Abandonei o papel sobre a mesa novamente e virei-me para pegar a chaleira.
Levei um bom tempo para tomar o café da manhã, por mais que não estivesse comendo nada. Queria esperar para ver se a chuva parava ou diminuía para que eu pudesse ir ao mercado, mas nenhum dos dois aconteceu. A chuva aumentou e minha vontade diminuiu. Ainda assim eu deveria ir ao mercado, e o quanto antes, para dar tempo de passar também na peixaria, visto que as batatas deveriam acompanhar o peixe, e não havia nenhum dos dois em casa. Coloquei uma bermuda e uma camiseta, apesar de estar frio por conta da chuva, e vesti as galochas que ficavam na porta de casa. Elas não tinham direito de entrar, igual eu em alguns dias, quando voltava mais tarde para casa. Dormia no sofá que fica no quintal, para não incomodar minha esposa. Ela acorda cedo para trabalhar, eu não acordo cedo. As galochas não tinham autorização para entrar em casa nunca. Pensei que eu ainda estava melhor do que elas. Tranquei a porta de casa e vesti a capa de chuva.
Ao começar a caminhar lembrei-me que o pé direito da minha galocha estava furado. Mas só depois de ter pisado em uma poça mais funda, o que fez com que meu pé ficasse encharcado. Resolvi que era melhor não olhar para trás para não ver a cor da água que estava na poça. Em algumas situações é melhor não ter a informação completa. Ignorância pode ser uma benção. Eu teria que tomar banho quando chegasse em casa de volta, então o pé seria lavado em breve. Foi o único evento até chegar ao mercado. A capa de chuva não estava furada, então o corpo ficou só úmido. Andei pelo mercado pingando e molhando todos os corredores por onde passei. Só quando estava ali pensei que poderia ter ido até a peixaria antes, mas corrigi a ideia lembrando que lá eu me demoraria demais conversando com o peixeiro sobre histórias de pescador que nem ele nem eu vivemos. Ele por que é peixeiro, e não pescador. Eu por que não vou pescar a tanto tempo que nem me lembro direito como é isso. De qualquer forma, contamos nossas histórias e damos risada ou ficamos impressionados, mesmo sabendo que é mentira o que o outro conta.
Passei pelo corredor de doces e peguei um pequeno chocolate para comer antes de voltar para casa. Não podia levá-lo para casa pois minha esposa encontraria a embalagem e ficaria furiosa por não ter comprado um chocolate para ela e por ter comprado um chocolate. Ela não acha que eles são muito saudáveis, então não podemos comê-los. Vez ou outra percebo um cheiro de doce que vem dela, mas ela diz que é o seu perfume. Cheguei na seção de hortifruti. Era meio da manhã e estava chovendo, então aquilo estava fervilhando de senhoras que não conversavam entre si e tentavam empurrar os mais jovens com seus carrinhos. Entre elas não havia brigas, um respeito mútuo e velado acontece nessas situações entre iguais, mas já me aconteceu de ficar preso entre o carrinho de duas adoráveis senhoras que não quiseram arredar o pé de jeito algum, então ficamos os três empacados. Tenho uma política de não confronto, então naquela situação fiquei aguardando tudo se resolver sozinho em silêncio e com a mente em um estado quase meditativo. Digo quase pois elas reclamavam de mim e de toda a juventude e da nossa pressa e falta de paciência que nos metia em todos os tipos de problemas e atrapalhava a sociedade inteira e que iríamos destruir o mundo daquele jeito. Tudo isso enquanto me empurravam com os carrinhos de mercado, que chegaram enquanto eu escolhia tomates, depois de outro bilhete da minha esposa que estava sobre a mesa, em um outro dia.
Andando devagar, tomando cuidado para não encostar em nada nem ninguém com a minha capa de chuva que ainda pingava, cheguei à banca de batatas. Parecia que ela havia sido abastecida à pouco tempo, pois estava completamente organizada, com todas aquelas batatas muito regulares que não sei como os plantadores de batatas conseguem fazer. Uma vez vi em um vídeo que é possível moldar frutas usando barbantes e elásticos ou mesmo recipientes fechados quando elas estão crescendo ainda no pé. Mas não acho que os batateiros cavem as batatas para moldá-las enquanto estão crescendo, então continuo até hoje com o mistério de como as batatas ficam tão parecidas entre si e permitem que o repositor faça a pilha tão bem arrumada na banca de batatas.
Comecei a pegar as batatas sem escolhê-las. Não havia motivo para escolher batatas que são iguais. Não gosto de pegar a cestinha porque não gosto de pegar o que todo mundo pega. Já vi senhoras, daquelas que mencionei, cutucando o nariz enquanto empurravam seus carrinhos, o que me leva a crer que as pessoas podem cutucar o nariz enquanto carregam cestinhas também. E pelo padrão de limpeza das áreas de circulação do mercado, não acho que eles devem limpar as alças das cestinhas com muita frequência. Também não peguei sacolinha plástica pois havia sido proibido pela minha esposa. Era para não gerar mais lixo. E então passamos a comprar sacolinhas em rolo para colocar o nosso lixo, ao invés de fazer igual aos vizinhos que reaproveitam sacolas do mercado. Isso me fez lembrar que eu havia esquecido a sacola de pano, então teria que pegar uma sacola no mercado e uma na peixaria e depois sumir com elas na minha gaveta de sacolas escondidas, que é onde guardo as sacolas que acabo levando para casa quando esqueço de levar a sacola de pano para os lugares. Guardo as sacolinhas assim para evitar que minha esposa brigue comigo por causa delas. Então escondo-as e de tempos em tempos levo uma sacola de sacolas até o centro de reciclagem do bairro.
Enquanto eu pegava batatas um senhor se aproximou da banca. Percebi que era um senhor pois estava usando uma boina ao invés de bobs, que são aquela peças plásticas que as cabeleireiras colocam no cabelo das mulheres para enrolá-los. Sei disso pois minha avó sempre colocava bobs quando estava arrumando-se para algum evento, por exemplo o jantar de natal na casa dela. Então ela passava a tarde andando pela cozinha preparando frango, regando a leitoa e mexendo farofa, usando os bobs no cabelo. Só depois me dei conta do quanto isso era estranho, pois normalmente não encontrava idosos masculinos no mercado de manhã, só femininos. Os masculinos iam ao mercado durante a tarde. Não sei por que. Ele circulou a banca até chegar ao meu lado e quando estendi a mão para pegar mais uma batata ele estendeu a mão também e pegou a batata que eu iria pegar. Preferi deixar passar e estendi a mão para pegar outra batata. O mesmo aconteceu. Com uma agilidade incrível de quem está acostumado a roubar batatas das mãos dos outros ele pegou a batata que eu estava alcançando. Olhei para ele e estendi a mão para o outro lado, alcançando uma batata que estava bastante longe dele. Ele me olhou nos olhos e fungou. Não bufou, fungou mesmo. Quando trouxe a batata para perto de mim, ele estendeu a mão e eu lhe dei a batata. Fiz o mesmo com mais duas batatas, entregando para ele assim que trazia elas para perto de mim. Depois de pegar quatro batatas, ele segurou a manga da minha capa de chuva e me levou até a banca de chuchus. Eu peguei dois chuchus e os entreguei para ele. Ali a situação era a mesma da banca de batatas: todos os chuchus iguais empilhados perfeitamente, quase uma obra de arte. O repositor devia ter muito orgulho do trabalho que fazia, pois sempre que repunha as bancas fazia com esse esmero.
Depois de passarmos por várias bancas de legumes, com a situação se repetindo e eu ainda sem minhas batatas, ele virou as costas para mim e foi embora. Eu havia enchido o seu carrinho e continuava sem batatas. Voltei à banca de batatas e peguei cinco delas. Ninguém me olhava nem comentou nada. Olhei no relógio e vi que havia passado quase dez minutos pegando legumes para aquele senhor de boina.
Cheguei no caixa e depositei minhas batatas e meu chocolate. Ainda precisava passar na peixaria, mas a chuva não parou enquanto eu estava no mercado. Paguei e fui até a frente do mercado, comer meu chocolate sob a cobertura da marquise, para poder jogar a embalagem no lixo que fica ao lado da porta. Assim teria que me preocupar só com a sacola de plástico quando chegasse em casa. O senhor não estava em lugar algum, não o encontrei mais no mercado. Comi meu chocolate, coloquei o capuz da capa de chuva e fui até a peixaria. Lá conversei um pouco com o peixeiro mas tive que ser breve pois ainda precisava preparar o peixe para o almoço e minha esposa tem um tempo bem curto para conseguir almoçar em casa.
Depois de tudo pronto para o almoço lembrei que não havia checado minhas mensagens e e-mails ainda. Peguei meu celular, que deixo em uma gaveta no aparador da sala, e vi que tinha uma ligação e uma mensagem da minha esposa, avisando que não poderia voltar para o almoço e para deixar o peixe para a noite. Ele já estava no forno, quase pronto.
De noite minha esposa acabou se atrasando um pouco para chegar, e quando chegou correu para ligar a televisão no noticiário. Ela ria muito e não quis me explicar o que estava acontecendo. Pediu para eu prestar atenção nas notícias enquanto ela arrumava a mesa e esquentava o peixe. Não demorou para aparecer uma imagem minha na televisão. Era uma filmagem da câmera do mercado que gravou enquanto eu andava pela seção de hortifruti pegando legumes para aquele senhor de boina e que agora eu via que estava descalço e sem calças. Ele usava boina e camisa somente. A notícia também mostrou uma foto dele tirada de quando ele fora preso por andar nu em uma praça. E ao lado mostrava uma imagem fixa minha e dele escolhendo legumes pelo mercado e com a pergunta “Quem o estava ajudando a escolher batatas?”.