Black períodos

Quem quer ser estóico hoje em dia? ‘Que loucura, eu não’. Em tempos de black friday, cyber monday, black november, semana da black friday, descontos cumulativos, quem quer viver só com o que precisa e deixar de lado todo o resto que não precisa? Deixa disso, eu quero é a maquina de pão e o aspirador automático, junto com uma esteira e uma bicicleta ergométrica, para começar a fazer academia em casa e perder os quilos que vou ganhar comendo pão feito em casa todos os dias. Isso sim é que eu quero.

Quem quer ser estóico hoje em dia? Consumir o planeta é muito mais legal, com todas as novidades e gadgets e outras tantas coisas que dá para comprar, que vem da China e entregam na porta de casa! Que loucura essa ideia de viver só com o que se precisa, que insanidade. Não faz sentido! Sentido mesmo faz consumir tudo o que aparece pela frente. Afinal, não é para isso que serve o dinheiro? Comprar coisas até que elas não caibam mais nas casas para depois ter que mudar para casas maiores, que ficam parecendo vazias e podem ser repletas de mais coisas e repetir o ciclo, até que a fatura do cartão morde a bunda turbinada pelo AbShaper (não turbina a bunda, só o abdômen mesmo, mas o nome é legal e o impacto de mencionar a bunda também) e todo mundo aperta o cinto e pede aumento e troca de emprego e pronto, problema resolvido, volta-se a consumir desenfreadamente.

Fui uma vez a uma casa em que os armários da cozinha estavam repletos de aparatos novos em suas caixas lacradas. Os donos da casa continuavam usando as mesmas panelas e formas velhas enquanto itens novos ficavam nas embalagens originais juntando poeira e ocupando espaço. Nessa casa o problema estava na cozinha, mas já ouvi de outros lugares em que essa situação se repete pela casa toda. Meu pai tinha uma escova de dentes elétrica nova guardada na caixa e continuava usando a velha, que precisava de jeitinho para funcionar. Se comprou uma nova, que a coloque para uso. Se não precisava de uma nova pois iria continuar usando a velha, que não comprasse uma nova! O desperdício começa quando tiramos o produto da prateleira e o acolhemos em nossa casa. Se ninguém comprar o que não precisa, a cadeia não é alimentada pela demanda de nãocessidade (vide O Lorax, do Dr. Seuss), somente pelo consumo consciente. Pode ser até dos mesmos itens, mas só quando tornam-se necessários.

Um tempo atrás escolhi ter um guarda roupas enxuto. Um dos benefícios é que consegui ajustá-lo para só comprar roupas quando preciso repôr alguma que acabou. E se acabou, reponho com outra igual, pois é a que preciso. Pronto, problema não criado. Consumo, sim, mas consciente. Não preciso de vinte camisetas, seria exagero. Três são poucas pelo lugar onde moro (acontece não raramente de chover por uma semana), mas seis é uma quantidade ideal. Então não existe motivo para ter mais nem menos do que isso. Consumo, mas consciente.

Seria hipócrita de minha parte dizer que não comprei nada durante o período de black dias. Sim, comprei. O que precisava, aproveitando que havia uma redução de preço. Nada do que comprei ficará guardado sem uso, pelo contrário. São itens que entram na minha casa para substituir algo que acabou ou para preencher uma falta que já existia. Compras planejadas pela necessidade de uso e não pelo consumo impulsivo. Nenhum foi uma máquina de pão. Não tenho a casa minimalista que gostaria, mas acho que consigo trazer bastante consciência para o consumo que temos. Não só meu, mas de todos aqui.

Hoje moro em uma casa grande, mas ao mesmo tempo pequena. É grande para os padrões de casa que são construídos atualmente, mas é pequena comparada com outras casas que já morei. E acontece algo interessante aqui. Como a casa é relativamente pequena para a nossa família de quatro pessoas, não há espaço para o que não tem função. Isso nos obriga a pensar muito bem antes de trazer algo para dentro de casa. E além disso, ainda nos incomodamos com coisas paradas, sem função, ou que poluam o visual do lugar. Assim sendo, mesmo tendo só o que buscamos usar, constantemente nos desfazemos de muitas coisas. Não sei nem de onde vem tantas coisas, mas elas vão indo embora conforme não tem mais utilidade para nós. E sempre seguindo a ordem: venda, troca, doação, reciclagem, descarte. Só existe o descarte se nenhuma outra alternativa é viável. A maioria das vezes as três primeiras alternativas resolvem, mas algumas vezes precisamos chegar até a reciclagem. Pouquíssimas vezes precisamos ir até o descarte.

Quem quer ser estóico hoje em dia? Eu quero. Não me incomodo com o muito, mas com o inútil. Ser estóico não é viver com nada, mas com o que é necessário. Ser estóico é viver muito além daquilo que se tem, buscando a plenitude de ser acima da necessidade de ter. Ser estóico é muito mais do que isso que escrevi aqui, mas já é difícil de aceitar só dentro do contexto que mencionei, então imagine no restante da aplicação da vida. Não sou estóico, mas pode ser que um dia chegue a ser.